Como garantia do direito à cidade, de modo transversal à outras ações governamentais, o planejamento urbano pode contribuir na construção de um espaço público que tenha cidadania e equidade para os seus pertencentes. Nas cidades, são menosprezadas situações recorrentes de assédio e violência de gênero na rua e no transporte público, e dados mostram que existem restrições de horário e uso para atividades como lazer e mobilidade. Além de limitações de segurança, são as mulheres (na maioria das vezes), que enfrentam problemas urbanos ao combinar tarefas domésticas e reprodutivas ao cotidiano profissional.
A pesquisa #meninapodetudo (Énois Inteligência Jovem, Instituto Vladimir Herzog, Instituto Patrícia Galvão, 2015) aponta que 90% das mulheres brasileiras entrevistadas já deixaram de fazer algo por medo da violência como frequentar espaços públicos ou usar determinadas roupas.
Segundo dados sobre assédio entre as mulheres (Datafolha, 2017), o espaço público é o local mais comum, citado por 22% das entrevistadas que declararam já haver sofrido assédio no transporte público e 29% nas ruas.
Em 2018, a prefeita de Paris Anne Hidalgo lançou um manual sobre o tema, em 2019, foi a vez de Barcelona com a prefeita Ada Colau. Algumas diretrizes podem ser extraídas a partir destas publicações. Em suas formulações, há um desejo de superar a tradicional separação do urbanismo entre zonas e funções, e de espaço público e privado. Por muitos séculos, o espaço público foi um território restrito aos homens como cidadãos, do qual as mulheres foram excluídas e confinadas à intimidade doméstica.
Pensar o planejamento urbano por meio da perspectiva de gênero também implica propor um modelo de cidade que leva em conta papéis cotidianos tradicionalmente assumidos pelas mulheres, como atividades de cuidado às crianças e idosos (cada vez mais compartilhadas com os homens), muitas vezes uma tarefa adicional à atividade profissional. Em oposição à cidade moderna pensada com base na função produtiva, a cidade com perspectiva de gênero tem como princípio incluir todas as etapas da vida humana nas cidades, buscando um ambiente urbano que promova igualdade de gênero e permita que grupos minoritários como as mulheres e LGBTs se sintam mais seguros e respeitados.
A prefeitura de Paris lançou o guia denominado Gênero e Espaço Público em outubro de 2018. Destinado à arquitetos, urbanistas e demais atores responsáveis pelo planejamento urbano, o objetivo é incentivar escolhas que atendam ao imperativo da igualdade de gênero. Segundo o manual, as diretrizes de mobilidade devem considerar trajetos além do tradicional casa-trabalho, acessibilidade nas calçadas (carrinhos de bebê, cadeiras de rodas, etc), e pontos de ônibus confortáveis e seguros com informações claras.
Sobre a apropriação e uso igualitário do espaço público, o manual defende que é necessário romper um padrão de vida cotidiana, onde as mulheres devem ser incentivadas a praticar esportes ao ar livre, e os homens devem compartilhar as tarefas domésticas, o que pode implicar em tempo de lazer para as mulheres. Dados mostram que mesmo nos grupos etários mais jovens, de 8 à 18 anos, 67% do uso do espaço público em Paris para atividades de lazer é de frequência masculina.
Critérios de visibilidade incluem ações como a divulgação de campanhas anti-assédio no transporte público, programação cultural e denominação de logradouros com paridade de gênero. Na França como um todo menos de 2% das ruas tem nome de mulheres.
Sobre a violência no espaço público, o manual recomenda avaliar a existência de áreas escuras e não ocupadas que podem criar espaços inseguros. Dispositivos de emergência podem ser implementados em lugares mais isolados como grandes parques, e os funcionários públicos (policiais, recepcionistas, equipes de limpeza, etc) devem ser sensibilizados sobre as questões de violência contra as mulheres. Eles serão os responsáveis em prestar ou encaminhar o atendimento em caso de ataque sexista ou agressão.
Em fevereiro de 2019, a prefeitura de Barcelona lançou o manual Urbanismo com perspectiva de gênero. O pacote de medidas busca definir critérios e assegurar a criação de instrumentos de inclusão de gênero em todos os projetos em andamento, pode ser definido em várias escalas, desde o plano urbanístico até o projeto de um espaço público. O conceito é amplo, mas ao mesmo tempo não traz receitas fechadas. Trabalha como um processo aberto, com a ideia de atualizar e adaptar-se às necessidades e as relações resultantes das experiências locais.
No Brasil ainda pouco se reconhece sobre a importância das discussões de gênero sob a ótica do planejamento urbano. Apesar disso, algumas pessoas, especialmente mulheres, mudam seus trajetos diários por causa do sentimento de insegurança em particular a noite. Uma pesquisa realizada pelo Instituto YouGov, em 2016, revelou que 86% das mulheres brasileiras já sofreram assédio em espaços urbanos.
A fórmula para enfrentar o desafio de cidade igualitária não é simples. O planejamento urbano deve incluir demandas específicas de grupos sociais excluídos do espaço público brasileiro, como grupos LGBTs, mulheres e a população negra. Além disso, para que esses grupos possam desenvolver um papel decisivo de transformação de fato, eles devem contribuir nos processos de tomada de decisão, o que inclui participação e representação na política brasileira.