Capítulo I – O diário da vó Anna
Era uma segunda-feira de primavera. Larissa quase não dormiu na noite passada de tanta ansiedade, pois naquele dia daria o primeiro passo na carreira dos seus sonhos, estagiando em um escritório especializado em conservação e restauro arquitetônico.
Nascida e vivida em Piracaia chegou em São Paulo com dezoito anos, quando passou no vestibular para estudar Arquitetura e Urbanismo numa conceituada universidade pública. Se apaixonou pela área de patrimônio cultural no período em que frequentou a disciplina de Técnicas Retrospectivas. Visitou muitos lugares de interesse histórico-cultural com a professora e desenvolveu um projeto de requalificação para uma antiga vila operária, chamada Vila Maria Zélia.
Larissa chegou adiantada em seu primeiro dia de estágio. Se apresentou aos colegas e logo foi informada que naquele dia sairiam para conhecer um palacete nos Campos Elíseos, objeto de um novo projeto de conservação do escritório.
Como ainda não conhecia o bairro do casarão decidiu fazer uma pesquisa em seu smartphone durante o caminho. Ela ficou surpresa por saber que os Campos Elíseos foi o primeiro bairro planejado da cidade de São Paulo e aprendeu que os fazendeiros de café residiram na região antes mesmo da inauguração da Avenida Paulista.
Entrando no bairro, Larissa e a sua nova colega de estágio Daniela, que apesar de ser nascida e criada em São Paulo também nunca tinha passado pelo local, ficaram encantadas com a quantidade de casarões preservados e ainda habitados.
Mais adiante, a arquiteta Lina, que conduzia o carro com as duas estagiárias, estacionou defronte a uma construção imponente. Aquele era o palacete que iriam visitar. Tocaram a campainha e apareceu um senhor que deveria ter uns oitenta anos, com seus dois cachorros vira-lata. Ele se apresentou com o seu primeiro nome, Francisco, e foi buscar as chaves para abrir a casa.
Enquanto isso, Larissa observava da calçada cada detalhe daquele edifício. O que mais chamou a sua atenção foi a escada de mármore de Carrara, o jardim repleto de árvores frutíferas, que a fez recordar de sua terra natal, e o portão com muitos ornamentos em ferro fundido e forjado, executado com primor há mais de um século, por um serralheiro artístico.
Francisco surge com as chaves e as visitantes ingressam a casa tombada. Chegando no hall de entrada ficam impressionadas com a beleza do piso em mosaico, executado com tesselas diminutas, colocadas uma a uma em área de aproximadamente cinquenta metros quadrados. Mais adiante, avistaram uma escada de mármore italiano rosa, e o esplêndido vitral que a colore e ilumina, executado pela Casa Conrado, primeiro ateliê de vitrais do Brasil.
Os quatro percorrem todos os ambientes do térreo e primeiro andar, e, por último, passam pelo porão. No local havia um amontoado de móveis que um dia fizeram parte da decoração daquela residência, quebrados, desmontados, entre partituras, livros, fotos em preto e branco e recortes de revista amarelados.
Larissa, quando entrou nesse ambiente, ficou extasiada com tantas antiguidadess, mas ao mesmo tempo indignada por não preservarem aqueles objetos que um dia fizeram parte da história da família. Enquanto ela observava atentamente cada item que ali estava Francisco, Lina e Daniela seguiram em direção ao quintal ajardinado.
Quando contemplava a singularidade das peças encontradas no porão, se deparou com um armário cheio de livros e cadernos muito antigos, escrito em diversas línguas, dispostos de forma desordenada, cobertos por uma grossa camada de poeira, que denunciavam o seu esquecimento.
No meio desses livros a entusiasmada estagiária encontrou uma velha encadernação de capa verde, que em sua primeira página revelava ser o diário de Anna, escrito no ano de 1900. A emoção que sentiu ao tocar pela primeira vez um objeto tão antigo foi tamanha, que por um momento ela se esqueceu que o grupo a aguardava no jardim da casa. Começou a folhear as páginas daquela caderneta e se transportou para o início do século XX, quando o bairro onde ela se encontrava vivia o auge de seu glamour.
Em uma das últimas folhas do diário um relato chamou a atenção de Larissa:
“Recordo-me que num final de tarde, quando eu tinha uns sete anos, a minha avó me chamou e perguntou se eu queria ver o documento mais antigo do Brasil. Eu, que adorava história, ainda mais aquelas contadas por ela, não hesitei em aceitar o convite. Ela então me levou até a capelinha que ficava distante da casa principal da fazenda. Chegando lá puxou o altar e atrás dele, embutido na parede de taipa, tinha uma caixa de madeira com uma portinha. Minha avó pegou uma enorme chave de dentro de seu avental e abriu aquela espécie de cofre. Lá dentro havia uma encadernação muito velha, com capa de couro e papel de trapo manuscrito com tinta ferrogálica. Ela leu um trecho que falava algo sobre as belezas naturais e os povos indígenas, me mostrou alguns desenhos e a página que comprovava a confecção do caderno no ano de 1549.”
A garota, que era muito curiosa, ficou intrigada com essa história. Ao perceber que o grupo a procurava tirou fotos de algumas páginas do diário de Anna com o seu celular, o encaixou no armário entre outras encadernações, apagou a luz e saiu do porão em direção ao aprazível jardim com árvores frutíferas que circundava o edifício.